Foi mais uma passeata inspirada num episódio da ”Visita Guiada” da Paula Moura Pinheiro. Insisto em dizer que a jornalista devia ser condecorada pelo Turismo de Portugal. Mas, até agora, não me consta…
Em primeiro lugar, no programa do dia, estavam as “Casas Pintadas”, na Fundação Eugénio de Almeida.
Atempadamente, tínhamos pedido uma visita guiada. Mas sucede que a data que escolhêramos caía no dia dos Monumentos e Sítios… Levámos uma nega! En tout cas, diz que podíamos fazer a visita por nós próprios. (Gran cosa…)
Ora se há coisas difíceis de interpretar pelo comum dos mortais, os frescos das “Casas Pintadas” estão na primeira fila! O remédio foi um voo razante à Biblioteca de Marvila, único sítio onde encontrei disponível a tese de pós-doutoramento “As casas pintadas de Évora”, uma edição da Fundação. (*)
Depois, under stress, foi baralhar e tornar a dar, isto é digitalizar alguns textos do livro, integrá-los com outra informação já recolhida em outras fontes e imprimir o conjunto, para distribuir aos meus companheiros de viagem.
O que nós nos divertimos, lendo à vez, em voz alta, a dita prosa, enquanto observávamos as pinturas das casas!
"As Casas Pintadas devem o seu nome ao singular conjunto de frescos quinhentistas que decora a galeria e o oratório anexo integrados no jardim. Estão classificadas como Imóvel de Interesse Público desde 1950.
À época da execução dos frescos, as Casas Pintadas pertenciam a D. Francisco da Silveira, 3º Coudel-mor de D. Manuel I e de D. João III e um poeta de referência no Cancioneiro Geral.
Em finais do século XVI, as Casas Pintadas foram anexadas ao Palácio da Inquisição para servir de moradia aos juízes do Santo Ofício. [...]
No início da década de sessenta do século XX, Vasco Maria Eugénio de Almeida, Instituidor da Fundação, adquiriu o imóvel que adaptou e cedeu para residência da Companhia de Jesus em Évora. Os sacerdotes jesuítas foram responsáveis pela coordenação científica do ISESE (Instituto Superior Económico e Social de Évora), criado em 1964, que funcionava no contíguo Palácio da Inquisição, já então propriedade da Fundação e que acolhe hoje o Fórum Eugénio de Almeida.
As decorações da galeria do jardim são das mais interessantes manifestações artísticas do género existentes em Portugal e um exemplar único da pintura mural palaciana da primeira metade do século XVI.
Em 2008, a Fundação levou a cabo um projecto de valorização e requalificação do jardim das Casas Pintadas e, em 2011, o conjunto fresquista foi objecto de estudo e de uma intervenção de consolidação e restauro."
[http://www.fea.pt/3601-as-casas-pintadas ]
"As Casas Pintadas foram durante longo tempo consideradas morada de Vasco da Gama em Évora. O navegador terá de facto vivido no aglomerado de casario ao qual pertence, entre outros edifícios, este das paredes pintadas, em casas cujas frontarias ostentavam pinturas murais que deram o nome à rua, antiga Rua das Casas Pintadas, topónimo hoje - e pela mesma ordem de razões - modificado para Rua de Vasco da Gama. No entanto, quanto ao claustrim, alguns autores parecem ter razões para recusar a sua posse, e logo a encomenda das pinturas, a esta figura."
[http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/74004/ ]
Imagens do primeiro painel:
"No primeiro painel do lado Sul, encontra-se a representação mais directamente liqada a um conhecido tema amoroso, o combate da garça e do falcão. Ao centro da composição domina, numa pose quase heráldica, uma garca-real, vista frontalmente, de patas afastadas e asas abertas.
A garça, e nomeadamente a garca-real, era, durante a ldade Média e o seculo XVl, um dos genéros de caça mais apreciados, sobretudo através da utilização de falcões especialmente treinados para o efeito - os falcões garceiros. O tema aparece aliás na parte superior do painel, onde uma garça luta com três falcões [...].
Como em muitos outros casos, o combate é a forma alegórica por excelência para caracterizar o duelo amoroso e é talvez essencialmente neste sentido que o tema se difunde nos ambientes de corte, cenários naturais do namoro nobre." (*)
A garça, e nomeadamente a garca-real, era, durante a ldade Média e o seculo XVl, um dos genéros de caça mais apreciados, sobretudo através da utilização de falcões especialmente treinados para o efeito - os falcões garceiros. O tema aparece aliás na parte superior do painel, onde uma garça luta com três falcões [...].
Como em muitos outros casos, o combate é a forma alegórica por excelência para caracterizar o duelo amoroso e é talvez essencialmente neste sentido que o tema se difunde nos ambientes de corte, cenários naturais do namoro nobre." (*)
Imagens do segundo painel:
"No segundo tramo, danificado pela abertura da porta agora tapada, vemos centralmente um par de sereias, mas também outros motivos que podemos reconhecer na cultura da época. Desconhecendo, pois, o motivo central da composição, podemos ver à esquerda uma harpia, com corpo de ave e cauda de pavão, patas de rapina e rosto de mulher, belos cabelos louros, ondulando sobre o dorso. Acima dela situam-se um estranho coelho malhado, um outro castanho erguido sobre as patas traseiras, um mocho ou coruja e um pato, em voo, de asas abertas.
Do outro lado da composição vemos uma sereia, com longa cauda de peixe, corpo de mulher de longos cabelos louros. O seu braço direito foi afectado pela abertura da porta, mas, na outra mão, segura um pente. Logo acima situa-se uma coruja que parece ser atacada por um bando de pássaros, provavelmente tordos, e, no topo, um grande falcão, em voo de caça, parece perseguir o pato que se vê, ao mesmo nível, do lado esquerdo da cena.
A posição da sereia, tal como a da harpia, é voltada para o centro e parece mesmo verificar-se uma certa simetria na composição, sustentada quer por esta simetria, quer pelas duas corujas, de um e outro lado da cena.
Faltando, como repetimos, o centro da composição, as principais personagens que nos surgem neste tramo são as sereias. Podemos individualizar a personagem do corpo de pássaro como uma harpia, de cunho essencialmente negativo, Iigada desgraça e aos pesadelos, mas verdade é que as sereias tanto podem ter o corpo de peixe, como de pássaro, como mesmo de cavalo. […]
Os aspectos da beleza, do canto e da música que fazem das sereias (pássaros ou peixes) elementos básicos do simbolismo da sedução mortal, são os elementos fundamentais que caracterizam estes seres híbridos no imaginário popular em qualquer época. […]
Qualquer que fosse a sua figuração, o seu sentido era um só - o da ligação da beleza e dos prazeres à possibilidade de perdição [...].
De facto, o carácter moralizante da sereia como elemento da perdição levou a confundir-se o seu significado não só com a perdição amorosa, mas com todo o tipo de perigos que a alma humana podia encontrar. […]
A sereia das Casas pintadas ostenta como atributo um pente e provavelmente teria na outra mão um espelho, instrumentos da vaidade, que levam à perdição e que vemos frequentemente associados às sereias. . […] No entanto, a maioria dos moralistas dava à sedução da sereia não só um sentido de perdição pelo amor mas, de uma forma mais geral, de todo o engano do mundo. […]
Sem dúvida que, neste segundo tramo da galeria, a presença das sereias pode e deve ter a ver com a ideia de engano amoroso e da falsidade e perdição que a ele pode estar associado. Esta leitura permite uma continuidade e uma oposição ao tramo anterior, onde eram tratados os perigos do amor puro simbolizado na figura da garça. A ideia de duplicidade, que encontrávamos no tramo anterior anterior exposta pela pega, encontramo-la aqui quase na mesma posição relativa com um coelho malhado, mistura que surge por vezes dos híbridos entre coelhos mansos e selvagens, e que a alternância de cor simboliza, tal como a pega, a noção do engano e da duplicidade, reforçando assim os atributos da sereia. Acima das sereias vemos uma cena em que um falcão, ou uma águia, aparece voando em perseguição de um pato. […]
Do outro lado encontramos a coruja a ser atacada por outros pássaros. A cena não é incomum na arte europeia e aparece de uma forma destacada numa célebre gravura, baseada num desenho de Jeronimo Bosch, que representa o tema da Nave dos Loucos. No canto superior direito, uma coruja é atacada por um bando de tordos. É costume destes animais defenderem-se defecando em cima dos seus inimigos, o que, por características das suas fezes, lhes pode causar a morte. Sendo a coruja o animal de Atena e tomado por isso como símbolo da sabedoria, a cena inscrita na nave dos loucos é tomada como um símbolo do aviltamento a que a sabedoria está sujeita por parte dos ignorantes." (*)
Do outro lado da composição vemos uma sereia, com longa cauda de peixe, corpo de mulher de longos cabelos louros. O seu braço direito foi afectado pela abertura da porta, mas, na outra mão, segura um pente. Logo acima situa-se uma coruja que parece ser atacada por um bando de pássaros, provavelmente tordos, e, no topo, um grande falcão, em voo de caça, parece perseguir o pato que se vê, ao mesmo nível, do lado esquerdo da cena.
A posição da sereia, tal como a da harpia, é voltada para o centro e parece mesmo verificar-se uma certa simetria na composição, sustentada quer por esta simetria, quer pelas duas corujas, de um e outro lado da cena.
Faltando, como repetimos, o centro da composição, as principais personagens que nos surgem neste tramo são as sereias. Podemos individualizar a personagem do corpo de pássaro como uma harpia, de cunho essencialmente negativo, Iigada desgraça e aos pesadelos, mas verdade é que as sereias tanto podem ter o corpo de peixe, como de pássaro, como mesmo de cavalo. […]
Os aspectos da beleza, do canto e da música que fazem das sereias (pássaros ou peixes) elementos básicos do simbolismo da sedução mortal, são os elementos fundamentais que caracterizam estes seres híbridos no imaginário popular em qualquer época. […]
Qualquer que fosse a sua figuração, o seu sentido era um só - o da ligação da beleza e dos prazeres à possibilidade de perdição [...].
De facto, o carácter moralizante da sereia como elemento da perdição levou a confundir-se o seu significado não só com a perdição amorosa, mas com todo o tipo de perigos que a alma humana podia encontrar. […]
A sereia das Casas pintadas ostenta como atributo um pente e provavelmente teria na outra mão um espelho, instrumentos da vaidade, que levam à perdição e que vemos frequentemente associados às sereias. . […] No entanto, a maioria dos moralistas dava à sedução da sereia não só um sentido de perdição pelo amor mas, de uma forma mais geral, de todo o engano do mundo. […]
Sem dúvida que, neste segundo tramo da galeria, a presença das sereias pode e deve ter a ver com a ideia de engano amoroso e da falsidade e perdição que a ele pode estar associado. Esta leitura permite uma continuidade e uma oposição ao tramo anterior, onde eram tratados os perigos do amor puro simbolizado na figura da garça. A ideia de duplicidade, que encontrávamos no tramo anterior anterior exposta pela pega, encontramo-la aqui quase na mesma posição relativa com um coelho malhado, mistura que surge por vezes dos híbridos entre coelhos mansos e selvagens, e que a alternância de cor simboliza, tal como a pega, a noção do engano e da duplicidade, reforçando assim os atributos da sereia. Acima das sereias vemos uma cena em que um falcão, ou uma águia, aparece voando em perseguição de um pato. […]
Do outro lado encontramos a coruja a ser atacada por outros pássaros. A cena não é incomum na arte europeia e aparece de uma forma destacada numa célebre gravura, baseada num desenho de Jeronimo Bosch, que representa o tema da Nave dos Loucos. No canto superior direito, uma coruja é atacada por um bando de tordos. É costume destes animais defenderem-se defecando em cima dos seus inimigos, o que, por características das suas fezes, lhes pode causar a morte. Sendo a coruja o animal de Atena e tomado por isso como símbolo da sabedoria, a cena inscrita na nave dos loucos é tomada como um símbolo do aviltamento a que a sabedoria está sujeita por parte dos ignorantes." (*)
Imagens do terceiro painel:
"O tramo seguinte, central da composição, é também o mais complexo do ponto de vista da composição e o mais movimentado, mostrando figuras de um colorido intenso e de um grafismo extremamente atraente e conseguido, como por exemplo, os dois galos de briga em primeiro plano ao centro. Este combate dos galos - quando visto em conjunto com a pequena perdiz ao lado - pode bem reportar-se à fábula 50 de Esopo, intitulada precisamente “A Perdiz e os Galos". […]
Não tanto o motivo da crueldade, mas o carácter quezilento e agressivo dos galos, capazes de lutar até à morte, torna-os símbolos da fogosidade agressiva e são muitas vezes ligados à luxúria extrema. […]
Uma outra característica interessante e que pode ter alguma relação com as pinturas é a ligação do veado com a música, já que a cena do veado aparece próxima a outra em que um pastor encanta lebres e perdizes com a música de uma gaita-de-foles. […]
A raposa aparece em duas situações distintas. É o mais divulgado símbolo da actividade sexual e da astúcia. O seu nome designa, nas mulheres, as prostitutas, e, nos homens, os matreiros. […] É por isso o símbolo do homem hipócrita ou dissimulado. […]
Dispersas mais ou menos por toda a cena e prolongando-se mesmo para outros tramos estão as lebres e as perdizes, animais vulgares na região, a caça mais banal, mas nem por isso menos dotada de um simbolismo extenso e por vezes contraditório. As lebres estão por todo o lado, mas a cena em que parecem ter uma intenção fundamental é aquela em que assistem a um concerto de gaita-de-foles dado por um pastor. […] O "concerto das lebres", dado o carácter esquivo destes animais, é ao mesmo tempo uma prova do encantamento da música, mas também uma situação burlesca que não deixaria de se tornar risível para o espectador. A lebre é o símbolo da luxúria, mas também da fecundidade. […]
A perdiz tem evidentes pontos de contacto com a simbologia da lebre e, como ela, é o mais comum animal das pinturas. Aparecem especialmente no tramo central e tal como outros animais deste tramo - o veado e a lebre -, o seu sentido fundamental é o da luxúria. […]
Não tanto o motivo da crueldade, mas o carácter quezilento e agressivo dos galos, capazes de lutar até à morte, torna-os símbolos da fogosidade agressiva e são muitas vezes ligados à luxúria extrema. […]
Uma outra característica interessante e que pode ter alguma relação com as pinturas é a ligação do veado com a música, já que a cena do veado aparece próxima a outra em que um pastor encanta lebres e perdizes com a música de uma gaita-de-foles. […]
A raposa aparece em duas situações distintas. É o mais divulgado símbolo da actividade sexual e da astúcia. O seu nome designa, nas mulheres, as prostitutas, e, nos homens, os matreiros. […] É por isso o símbolo do homem hipócrita ou dissimulado. […]
Dispersas mais ou menos por toda a cena e prolongando-se mesmo para outros tramos estão as lebres e as perdizes, animais vulgares na região, a caça mais banal, mas nem por isso menos dotada de um simbolismo extenso e por vezes contraditório. As lebres estão por todo o lado, mas a cena em que parecem ter uma intenção fundamental é aquela em que assistem a um concerto de gaita-de-foles dado por um pastor. […] O "concerto das lebres", dado o carácter esquivo destes animais, é ao mesmo tempo uma prova do encantamento da música, mas também uma situação burlesca que não deixaria de se tornar risível para o espectador. A lebre é o símbolo da luxúria, mas também da fecundidade. […]
A perdiz tem evidentes pontos de contacto com a simbologia da lebre e, como ela, é o mais comum animal das pinturas. Aparecem especialmente no tramo central e tal como outros animais deste tramo - o veado e a lebre -, o seu sentido fundamental é o da luxúria. […]
Imagens do quarto painel:
"Ao contrário do que observamos até aqui, o último tramo introduz na discursividade do programa um conjunto de animais fantásticos. Ao centro, uma hidra de sete cabeças domina a composição, sendo rodeada de vários animais - um cisne, um lagarto, um grifo, um leão, um pequeno dragão, uma pantera e um pavão de cauda aberta. Todos eles, à excepção deste último, se encontram em directa relação com a hidra central. Ao contrário, o pavão, volta-se directamente para o espectador, e parece fazer grupo com uma pavoa que aparece mais à esquerda na cena, já próxima do tramo anterior.
Apesar da figuração mais comum da hidra na iconografia cristã se relacionar com a besta apocalíptica, a hidra está ligada inicialmente aos Trabalhos de Hércules, que a venceu. A hidra, com as suas múltiplas cabeças, que se multiplicam quando são cortadas, representa a multiplicidade dos vícios, sobre os quais se obtêm apenas vitórias passageiras, retornando logo de seguida, como as cabeças cortadas da hidra. [...]
A circularidade da composição, como alegórica forma de uma roda da fortuna incessantemente cíclica, define o quadro de apresentação de uma Psicomaquia em que aos vícios concentrados na figura da hidra se opõe um bestiário de virtudes, personificadas por animais provavelmente investidos de um significado de tipo "solar" ou mesmo cristológico [...].
Mesmo os seres rastejantes - o lagarto e o pequeno dragão - podem deter aqui uma carga positivamente virtuosa, designando a Vigilância e a prudência, a Força Moral (“fortitudo”) e o Ardor, com que são geralmente investidos na heráldica nobiliária os quatro animais nos vértices das diagonais do painel - cisne, leão, pantera, grifo - são de diferentes modos emblemas da força e do amor divinos, animais psicagogos que podem conduzir aos céus as almas virtuosas, impregnadas pelo amor ideal e puro como a brancura do cisne, perfumadas como o irresistível odor da pantera que, como Cristo, atrai todos os animais afastando a satânica serpe, fortes e vigilantes como o leão que dorme de olhos abertos guardando as portas dos templos, sábias e poderosas como o grifo que reúne na sua configuração híbrida a dupla natureza da águia e do Ieão. O pavão parece no entanto estar algo alheado deste combate. EIe abre majestosamente a cauda de mil olhos perante a fêmea a que faz a corte nupcial, exibindo as belas penas que perdera no inverno e que renascem na primavera. […]
Apesar de nos termos focado num mais divulgado simbolismo destas figuras fantásticas, convém recordar que também esses estranhos seres tiveram um simbolismo dentro do discurso amoroso codificado do mundo tardo-medieval. […] A hidra, por exemplo, representa o desbragado, o homem que tem "muitas amigas” e com elas reparte o seu poder, o que daria outra significação ao conjunto." (*)
Apesar da figuração mais comum da hidra na iconografia cristã se relacionar com a besta apocalíptica, a hidra está ligada inicialmente aos Trabalhos de Hércules, que a venceu. A hidra, com as suas múltiplas cabeças, que se multiplicam quando são cortadas, representa a multiplicidade dos vícios, sobre os quais se obtêm apenas vitórias passageiras, retornando logo de seguida, como as cabeças cortadas da hidra. [...]
A circularidade da composição, como alegórica forma de uma roda da fortuna incessantemente cíclica, define o quadro de apresentação de uma Psicomaquia em que aos vícios concentrados na figura da hidra se opõe um bestiário de virtudes, personificadas por animais provavelmente investidos de um significado de tipo "solar" ou mesmo cristológico [...].
Mesmo os seres rastejantes - o lagarto e o pequeno dragão - podem deter aqui uma carga positivamente virtuosa, designando a Vigilância e a prudência, a Força Moral (“fortitudo”) e o Ardor, com que são geralmente investidos na heráldica nobiliária os quatro animais nos vértices das diagonais do painel - cisne, leão, pantera, grifo - são de diferentes modos emblemas da força e do amor divinos, animais psicagogos que podem conduzir aos céus as almas virtuosas, impregnadas pelo amor ideal e puro como a brancura do cisne, perfumadas como o irresistível odor da pantera que, como Cristo, atrai todos os animais afastando a satânica serpe, fortes e vigilantes como o leão que dorme de olhos abertos guardando as portas dos templos, sábias e poderosas como o grifo que reúne na sua configuração híbrida a dupla natureza da águia e do Ieão. O pavão parece no entanto estar algo alheado deste combate. EIe abre majestosamente a cauda de mil olhos perante a fêmea a que faz a corte nupcial, exibindo as belas penas que perdera no inverno e que renascem na primavera. […]
Apesar de nos termos focado num mais divulgado simbolismo destas figuras fantásticas, convém recordar que também esses estranhos seres tiveram um simbolismo dentro do discurso amoroso codificado do mundo tardo-medieval. […] A hidra, por exemplo, representa o desbragado, o homem que tem "muitas amigas” e com elas reparte o seu poder, o que daria outra significação ao conjunto." (*)
Imagens do último painel
"O último painel do programa, de área mais reduzida que os anteriores, enquadra a entrada do oratório, espaço de práticas devocionais e de recolhimento religioso. Cremos que por essa diferenciação espacial e funcional certas figurações em torno da porta, a qual define uma fronteira com o profano mundo exterior, se apresentam e justificam principalmente como marcação de um limiar do sagrado, porém recorrendo ainda a imagens do "bestiário" - pelicano, falcão, basilisco - e sem patentes descontinuidades com o essencial do discurso que as precede e que temos vindo a tentar interpretar.
A imagem do falcão, à esquerda, que prende nas garras uma lebre, preparando-se para a despedaçar, pode aliás estabelecer alguma correspondência com uma das componentes de exemplo e moralidade sugeridas pelo painel anterior. A lebre simboliza correntemente a lascívia, o êxito predador do falcão podendo significar a vitória sobre a concupiscência, tema que não será alheio, como julgamos perceber, ao pavão de cauda aberta na composição precedente. É de algum modo um comportamento pouco natural nesta ave de rapina, mais dada à caça de voláteis, vendo-se por cima dela, e acentuando a invulgaridade da cena, um pato que voa - e que porventura se salva, ao contrário do que se sugere no tramo das sereias. A estranha indiferença do falcão, ocupado aqui em aniquilar desprezÍvel presa, poderá assim deliberadamente concorrer para figurar mais a carga simbólica de uma acção que ilustrar um aspecto das artes de altanaria.
A centralidade, neste sector, é porém conferida ao pelicano que fere o peito, aspergindo com o seu próprio sangue as crias no ninho, ressuscitando-as, como refere a fábula e a literatura cristã, ao fim de três dias. D. João II adoptou esta suprema imagem de caridade como seu emblema, mas não é por alusão ao monarca que o pelicano ali está. Ele é, acima de tudo, uma imagem eucarística e uma prefigura de Cristo na cruz, que também verteu o seu sangue pela salvação da humanidade. [...]
Esta específica imagem do pelicano crístico sobrevaloriza o seu simbolismo cristão pela presença do basilisco, à direita. Lendariamente nascido de um ovo de galo negro, trata-se de um hibrido que participa essencialmente da simbólica infernal da serpente, configurando-se ainda com asas de morcego, cabeça de ave e crista de galo, esta entendida como coroamento que o identifica como soberano dos seres rastejantes e ctónicos, símbolos arquetipicos do Mal e do Diabo. O seu maior e mais temido poder era o de aniquilar as vítimas pelo simples olhar. E uma das mais correntes versões da história do pelicano sacrificial diz-nos que a temporária morte das suas crias se ficou a dever aos venenosos eflúvios do olhar do basilisco. A pintura consagra assim, ao mesmo tempo que figura o sujeito monstruoso do Mal, a vitória de Cristo, que purifica os humanos filhos absolvendo-os com o seu próprio sangue. A representação eucarística do pelicano é, eloquentemente, a última imagem mental que o passante, ao longo do alpendre, guardaria para si ao penetrar no oratório." (*)
Na parte inferior da parede, sob as imagens principais, corre um friso de grotesco, de datação provavelmente posterior:
A imagem do falcão, à esquerda, que prende nas garras uma lebre, preparando-se para a despedaçar, pode aliás estabelecer alguma correspondência com uma das componentes de exemplo e moralidade sugeridas pelo painel anterior. A lebre simboliza correntemente a lascívia, o êxito predador do falcão podendo significar a vitória sobre a concupiscência, tema que não será alheio, como julgamos perceber, ao pavão de cauda aberta na composição precedente. É de algum modo um comportamento pouco natural nesta ave de rapina, mais dada à caça de voláteis, vendo-se por cima dela, e acentuando a invulgaridade da cena, um pato que voa - e que porventura se salva, ao contrário do que se sugere no tramo das sereias. A estranha indiferença do falcão, ocupado aqui em aniquilar desprezÍvel presa, poderá assim deliberadamente concorrer para figurar mais a carga simbólica de uma acção que ilustrar um aspecto das artes de altanaria.
A centralidade, neste sector, é porém conferida ao pelicano que fere o peito, aspergindo com o seu próprio sangue as crias no ninho, ressuscitando-as, como refere a fábula e a literatura cristã, ao fim de três dias. D. João II adoptou esta suprema imagem de caridade como seu emblema, mas não é por alusão ao monarca que o pelicano ali está. Ele é, acima de tudo, uma imagem eucarística e uma prefigura de Cristo na cruz, que também verteu o seu sangue pela salvação da humanidade. [...]
Esta específica imagem do pelicano crístico sobrevaloriza o seu simbolismo cristão pela presença do basilisco, à direita. Lendariamente nascido de um ovo de galo negro, trata-se de um hibrido que participa essencialmente da simbólica infernal da serpente, configurando-se ainda com asas de morcego, cabeça de ave e crista de galo, esta entendida como coroamento que o identifica como soberano dos seres rastejantes e ctónicos, símbolos arquetipicos do Mal e do Diabo. O seu maior e mais temido poder era o de aniquilar as vítimas pelo simples olhar. E uma das mais correntes versões da história do pelicano sacrificial diz-nos que a temporária morte das suas crias se ficou a dever aos venenosos eflúvios do olhar do basilisco. A pintura consagra assim, ao mesmo tempo que figura o sujeito monstruoso do Mal, a vitória de Cristo, que purifica os humanos filhos absolvendo-os com o seu próprio sangue. A representação eucarística do pelicano é, eloquentemente, a última imagem mental que o passante, ao longo do alpendre, guardaria para si ao penetrar no oratório." (*)
Na parte inferior da parede, sob as imagens principais, corre um friso de grotesco, de datação provavelmente posterior:
Imagens de carácter religioso no interior do oratório / capela...
S. Cristóvão - Pietá - Missa de S. Gregório |
... convivem com outras de carácter profano, já que o friso de grotesco se estende até aqui.
Webgrafia:
1 comentário:
O sr. Vasco parece ter sido um verdadeiro homem de negócios.
O saber é o maior bem do Homem.
"Borrar" a pintura terá sido natural para inquisidores.
Saber, e ter recursos para, redescobrir é quase "sobrenatural".
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